Zuhair Mohamad
F-B_WEB
“Cicatrizes físicas eu tenho algumas: um dedo quebrado, marcas no órgão genital e sinais nas pernas.”

O que o senhor mais espera da comissão da verdade?
Espero que apure as participações. Quero saber quem mandou e quem praticou as torturas. Quem ordenou as prisões, que na verdade eram sequestros, pois não havia mandados. Eles faziam isso principalmente de noite, porque na hora de matar não tinha testemunha. Temos de passar essas histórias a limpo, recuperar e abrir os documentos da época. Remontar a verdade factual dos acontecimentos. A criação dessa comissão demorou muito. Isso tinha de ser feito logo que a ditadura acabou. Teve muita morte na tortura. Eu mesmo vi gente morrendo nos órgãos repressores.
Quais cicatrizes ficaram dessa época, físicas e psicológicas?
Eu não tenho cicatrizes psicológicas. Não sei porque. Tem gente fica incomodada, se emociona e chora ao lembrar do que passou. Mas eu acho até bom contar porque todo mundo deve saber a bestialidade que foi a ditadura. Agora, cicatrizes físicas tenho algumas. Apesar do choque elétrico não deixar marcas, tenho um dedo quebrado, no órgão genital e sinais nas pernas. As pancadas deixavam vergões na época, mas depois desapareciam. O maio prejuízo para saúde foram as sessões no pau-de-arara, que acaba com a coluna. Há poucos dias fiquei três dias sem poder andar e praticamente sem dormir devido a esse problema.
Quando o senhor foi preso?
Em 1971. Na verdade fui sequestrado, porque não havia mandado. Foi depois do AI-5, quando perdemos mobilidade. Na época fazíamos requisições bancárias, assalto a banco, na verdade. Fizemos uns quatro, mas bem discretos. Nunca ferimos ninguém nem fomos feridos. Nosso objetivo era ter condição de preservar nossa liberdade. Não dávamos publicidade à isso. E fomos sustentando o movimento com isso aí. Mas ficamos visados. Eu fui preso por conta de uma blitz. Eu já tinha as manhas para escapar de todas, mas caí de forma inesperada.
Como foi sua prisão?
Primeiro eu escapei de ser preso. Mandaram eu parar o carro na blitz. Havia armas no porta malas. Abri o capô, mas disfarcei, peguei um documento, dei meia volta e segui andando. Pouco depois ouvi o povo gritando: de quem é esse carro? Andei uns 30 metros, mas a sensação é que esse percurso foi mais longo que já percorri. Por sorte, quando cheguei à esquina passava um táxi. O taxista perguntou para onde eu ia, mas só consegui acenar para ir em frente. Se eles me pegassem ali eu era morto. Meu nome já tava visado demais. Era inimigo público e a ordem era matar. E eu ainda estava armado, com revolver na cintura.
Quando o senhor foi pego?
O carro que estava era legal, registrado no nome do irmão de um companheiro nosso. Mas o dono do carro foi pego e torturado. Ele não aguentou o tranco e deu as coordenadas de onde eu morava, porque ninguém sabia ao certo o endereço. Na casa só estávamos eu e outra pessoa. Eu tinha acabo de dizer que estávamos facilitando, quando ouvi pessoas pulando o muro e andando. Olhei pela vidraça e vi que era o Exército. Pensei: estamos presos, possivelmente mortos. E combinamos não resistir, porque seríamos metralhados na hora, com justifica. Eu sabia que a ditadura era covarde. Na frente dos outros eram bonzinhos, respeitavam as normas. Mas sozinhos, sem testemunhas, eram de uma selvageria fora do comum. Então resolvemos esperar juntar gente. Eles metralharam a casa toda, mas aguardamos o máximo. Quando chegaram jornalistas comecei a fazer um discurso. Disse não era terrorista, mas lutador contra o golpe. Eles continuaram atirando e gritando para calarmos a boca. Como não podíamos esperar demais, senão esvaziava a plateia, pedi que parassem de atirar que iríamos sair. Disse: aqui é Elio Cabral, filho de fulano de tal, militante contra a ditadura. Eles mandaram eu colocar as mãos na nuca e sair.
Para onde te levaram?
Para a Operação Bandeirante (Oban), que deu origem ao Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), na Rua Tutóia, uma casa de tortura e de morte. Me apresentaram como o “famigerado Matheus”, que era meu nome de guerra. De cara, um deles chegou atrás de mim com um fio desencapado e encostou na minhas costas. Voei e meti a cara na parede. Eu tinha medo era de morrer. Mas logo eu aliviei, porque soube que minha prisão teve publicidade e isso dava certa segurança. Minha prisão foi noticiada na BBC, na Inglaterra, em rádios da França, Cuba e em Moscou. Depois me passaram para outra equipe, do capitão Albernaz. Fiquei nos órgãos de repressão por seis meses.
Quando começaram as sessões de tortura?
Eles me subiram para sala de tortura. Mandaram eu tirar a roupa e tive de ficar nu. Sentei na chamada “cadeira do dragão”, um objeto de tortura que imobiliza as pernas, todo forrado de zinco. Colocaram um outro cara sentado pelado no meu colo e começaram a sessão de eletrochoque. Tínhamos orientação para gritar, porque faríamos força e iríamos desmaiar. Aí eu gritei. Mas o cara falou: “o chefe não sabe que você está aqui, então cala a boca. Estamos fazendo isso para seu próprio beneficio”. Então ele pegou um pano sujo de urina e de merda e colocou no meu nariz e na boca. Pedi para tirar aquilo do meu rosto e disse que não iria gritar mais. Aguentai tudo calado. E com choque é o seguinte: nas extremidades a dor é maior. A preferencia deles era de colocar o fio desencapado na minha orelha e no pênis.
Houveram outros tipos de tortura?
Depois pegaram um porrete de borracha deram nas minhas costas. Também me batiam com pau. Isso era refresco em comparação com o choque. Mas teve também o pau-de-arara, onde você fica pendurado, como um frango assado. Só de te colocar lá já era uma tortura inominável. Mas eles ainda davam choque. Na verdade, eu achava até bom que me davam choque porque eu esperneava e movia um pouco o corpo. Ficar parado no pau-de-arara dava uma dor insuportável. Eles sabiam o máximo que podiam deixar você na tortura, senão te matava. Do jeito que você saia do pau-de-arara, você ficava. Totalmente paralisado naquela posição. Aí eles chamavam um policial federal fortão que vinha e massageava a gente para voltar a musculatura ao normal. Essa era a rotina.
O que eles pretendiam descobrir com a tortura?
Eles só queriam saber duas coisas: os pontos e os aparelhos. Os pontos eram os locais onde a gente se encontrava. E os aparelhos eram os lugares em que a gente morava. Era tudo sigiloso. Ninguém divulgava o endereço de casa por receio de alguém ser pego, não aguentar o tranco da tortura e contar para a polícia. Eles queriam descobrir as coisas dos presos o mais rápido possível para não dar tempo do pessoal se mobilizar e fugir.
Como o senhor saiu de lá?
Eu saí, mas não foi definitivo, porque depois fui julgado e condenado. Numa sequência de seis dias de tortura, entrei em coma. O choque te queima e deixou meu braço como um arco-íris. Estava inchado, mais grosso que minha perna. Eu estava deitado num colchão no corredor quando passou um major da aeronáutica e que me viu todo deformado. Lembro dele perguntar aos policiais sobre tratamento médico que eu tinha recebido. Ele ficou irritado, porque eu deveria ir imediatamente para o hospital. “Vocês querem mais encrenca? Já deram publicidade que ele tá aqui”, disse o major. Quando eles me pegaram eu desmaiei. Só lembro quando eu já estava no Hospital Militar. Passaram mercúrio em mim com um pincel. E disseram que não tinham condição de me tratar lá. Me mandaram para o Hospital das Clinicas. Os militares queriam me internar dizendo que me encontraram na rua, vítima de um acidente de trânsito e que o carro que pegou fogo. Disseram que meu nome era Marcos Xavier e que meus documentos se perderam no acidente. Eu tirei forças para dizer que era mentira, que o nome daquilo ali era tortura. No outro dia apareceu um padre e perguntou meu nome verdadeiro. Eu contei tudo para ele novamente.
Para onde o senhor foi depois de recuperado?
Fiquei 25 dias no Hospital das Clínicas, mais 20 dias no Hospital Militar, mas sem tortura. Um médico fez um relatório que me salvou. Ele escreveu que eu não poderia ser maltratado novamente. Disse que se isso ocorresse de novo, a culpa seria dos militares. Então me levaram de novo para a Oban. Mas voltei a ser torturado, e foi a mais dolorosa de todas. Eu estava magrinho, convalescente. Mesmo assim me deram choque no pênis de novo. Dei um grito alucinante. Aí alguém disse que não precisava me torturar mais, porque os demais membros da minha organização estavam todos presos. Depois foi só tortura psicológica, mas isso é fichinha.
Como foi o julgamento?
Antes de ser julgado fiquei no presidio Tiradentes, onde hoje é uma estação de metrô em São Paulo. Depois fui para o Carandiru e posteriormente para a penitenciária, mas eu sequer havia sido julgado. Era uma coisa medieval aquele lugar. Aí fizemos greve de fome, porque estávamos lá ilegalmente. Então tiraram a gente. Eu fui julgado e condenado há 18 anos de prisão por subversão e mais 3 anos por participar de organizações clandestinas. No julgamento eles falaram que eu estava foragido, para você ver como eles não ligavam para coisa nenhuma. O advogado pediu para eu me levantar e mostrar que eu estava presente. Eu recorri da decisão no Supremo Tribunal Militar, porque todos achavam que eu sairia livre. Baixaram a pena para sete anos e meio. Cumpri 5 anos e fui para condicional, em 1976.