Foi a partir daí, que o chefe dos arquivos e interrogatórios, Capitão André Leite Pereira Filho, informante do juiz-auditor Nelson Guimarães Machado, passou a usar o codinome 'Dr. Edgar'.
Trecho extraído do livro "CLANDESTINO - MEMÓRIAS POLÍTICAS DE EDGARD DE ALMEIDA MARTINS"
FOTO DO PRÉDIO ONDE FUNCIONOU A SEGUNDA AUDITORIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MILITAR NA BRIGADEIRO LUIS ANTONIO, 1249, BELA VISTA, EM SÃO PAULO. ENTREGUE NO DIA 05/08/2013 A OAB E AO NÚCLEO DE PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA PELO GOVERNO FEDERAL PARA SER O MEMORIAL DE LUTA PELA JUSTIÇA.
Trecho do depoimento de Rosa Cardoso (Coordenadora da Comissão Nacional da Verdade) à Comissão da Verdade da OAB-SP no dia em que foi celebrada a entrega do prédio onde funcionou a auditoria militar de São Paulo pela União à OAB:
Na Auditoria Militar denunciava-se a tortura e o regime vigente. Ali, a luta
continuava, articulando-se com a travada no mundo exterior ao cárcere, e emitia a
mensagem: sobrevivemos, estamos vivos, nos restam forças, não nos sentimos vencidos,
prosseguiremos.
Quanto à tortura, todos nós sabemos, ela foi uma escolha das elites militares que
articularam e produziram o Golpe de 64 e que depois, juntamente com representantes
das elites civis e empresariais, implantaram e administraram a ditadura imposta. Ela não
foi acidental, excepcional, desvio imputável a militares ou policiais emocionalmente
desequilibrados. Foi a arma privilegiada de uma guerra, a guerra revolucionária, a qual
elites influentes de nossas Forças Armadas aderiram, desde a década de 50 para manter
seu poder e prestígio, no âmbito das Forças Armadas.
O cenário então vigente era o de uma demorada guerra fria, que indicava o ocaso
das guerras tradicionais. Nossas elites militares concluíram assim, que, na ausência de
guerras convencionais, deviam preparar-se para a guerra revolucionária, tal como
aconteceu no Vietnã e na Argélia.
Fizeram sua formação, treinaram seus subalternos nos Estados Unidos, onde,
ontem e hoje, utiliza-se largamente da tortura, ou seja, onde se criam em laboratórios
ensinam-se e se exportam técnicas de tortura (atualmente chamadas de métodos de
interrogatório coercitivo). Nossas elites militares incorporaram a tortura como elemento
fundamental do Estado de Segurança Nacional imposto.
Contudo, em 1964, estas elites já sabiam que a tortura servia menos para obter
informação valiosa sobre o curso de ações do inimigo do que degradar, aterrorizar e
submeter cada preso e o conjunto da população ao poder ditatorial. Nossas elites já
sabiam que a tortura não produziria informação significativa para a definição de
estratégias da contra-insurgência praticada por elas, Forças Armadas.
Os depoimentos obtidos sob tortura dissimulam a verdade, misturam verdade e
mentira, não são confiáveis. A dinâmica do suplício, o frequente descontrole do
torturador e o sofrimento da vítima destroem a objetividade da informação prestada.
Não há mais a palavra de um sujeito consciente, autônomo, numa situação de
alteridade e comunicação efetiva com o outro. Existe a palavra arrancada, apropriada,
subvertida pelo torturador, na forma que este lhe quer impor, torturador que, aliás, trabalha a partir dos interesses de um órgão ou de uma agência, sempre em competição
com outra. Exemplifico: OBAN x DOPS ; OBAN x Cenimar.
O torturado diz o que pode livrá-lo do suplício, o que pode salvar seu corpo. É a dor,
o corpo, a sobrevivência que estão em jogo. É dizer o que deve ser dito para cessar a dor
e garantir a vida. A vida muitas vezes reclamada pelo compromisso com os filhos, o
companheiro, os companheiros, os pais. Ressalte-se: para aqueles que não tinham o
compromisso de viver, de atravessar de qualquer modo a correnteza dos choques, das
pancadas, das humilhações e chegar à outra margem, a polarização era cessar a dor ou a
morte. Sim, para cessar a dor muitos desejaram intensamente a morte.
Portanto, as elites militares que construíram nosso Estado de Segurança Nacional
sabiam que a tortura não era uma via confiável para obterem informações, mas uma
prática destinada a demolir seres humanos. Antes do golpe já sabiam que queriam e
implantariam um Estado que torturasse e aterrorizasse a população, visando implantar a
sua lei, a sua ordem, o seu modelo econômico. Foi isto o que aconteceu.
Rosa Cardoso
Do Rio de Janeiro para São Paulo, 4 de agosto de 2013